Durante dez anos vivi no litoral do Paraná, e lá tive um doce amigo chamado de "Perseu".
Com um jeito "desmilinguido" ele bateu na porta da minha vida em uma noite chuvosa e fria, envolto numa perigosa receita de cimento e água.
Com os olhos grudados de poeira e maresia, ele era pele e osso.
Um protótipo perfeito de algo que havia escapado do rigoroso controle de qualidade da esmerada mãe natureza.
Minha companheira na época era mais adepta da companhia de dóceis cãezinhos, mas eu particularmente, sempre gostei mais daquele jeito independente e esnobe dos gatos, muito embora aquele bichano mal acabado não apresentasse nenhuma referência da peculiar elegância felina.
Ainda assim, achei melhor ele passar uma noite ao menos no nosso cafofo, afinal, deixar-lo na chuva seria uma crueldade, e pela manhã, eu o convidaria a ronronar em outras praias.
Mas qual não foi minha surpresa ao perceber que até mesmo "Schumycky" o nosso cão e "dublê de salsicha", havia recebido o bichano com uma espantosa euforia.
- Ora bolas, esse cachorro nunca foi exemplo de bom senso mesmo - pensei comigo antes de dormir.
Na manhã seguinte ao acordar, deparei-me com uma cena insólita:"Schumycky" deitado no quintal com o gato dormindo sob suas patas.Ambos felizes da vida, como se fossem velhos amigos.
- Mas como pode isso? - perguntei-me com o meu habitual mau humor matinal.
Resolvi ignorar aquela cena comovente e sai de casa com o bichano nas mãos, afim de deixa-lo em lugar mais adequado, como uma casa de amparo a gatos feios, estranhos e de comportamento duvidoso.
Mas antes de entrar no carro, ouvi "Schumycky" chorando no quintal.
Olhei para o gato, e não resisti:
- Está bem coisa feia, você fica! - resmunguei.
Com o passar dos dias aquele monte de pele e osso se demonstrou uma grande companhia.
Resolvemos batiza-lo de "Perseu". Isso mesmo "Perseu" sem "s".
Acho que na verdade , escolhemos esse nome porque "Schumycky" sempre levou o maior jeito para "Andrômeda".
Um amigo chegava a dizer:
- Essa cachorro de vocês é meio "fora de freqüência". (!?)
Depois, pensei até em mudar o nome do gato, mas... E se os deuses do olimpo não gostassem?Para a surpresa de todos, Perseu cresceu e se tornou um belíssimo gato!
Talvez "Zeus" tenha dado "uma forçinha" .
Com seus pelos de tom amarelo-dourado ele andava pela casa com aquele "ar blasé" próprio dos filhos do panteão sagrado.
Tudo bem que por vezes, ele impiedosamente esbofeteava "Schumycky" pelo simples fato de estar estressado, ou talvez por não gostar do novo sabor de sua ração.
Pobre "Schumycky"!
Ele não entendia que "Perseu" ao montar em suas costas, bradava na língua dos gatos:
- Ande Pégassus... voe seu idiota!
Diante de "Perseu" ele ficava maravilhado. Parecia petrificado, como se houvesse olhado nos olhos de Medusa.
Tempos depois, estive as voltas com problemas de saúde que me obrigavam a ficar em casa de repouso.
Naqueles dias eu observava a malemolência burguesa daquele gato.
Arrogante como poucos, ele não trocava mais do que dois "miaus" comigo durante uma tarde inteira, mas aos poucos, percebi a sua disposição de permanecer ao meu lado.
Mas daquele jeito: absolutamente"na dele".
E assim, por longo tempo, "Perseu" manteve-se conosco: Ignorando as visitas, surrando "Schumycky", rasgando minhas meias e implicando com os vasos de plantas.
Com a gravidez de minha companheira, resolvemos que "Schumycky" e "Perseu" deveriam nos deixar, e os entregamos aos cuidados de alguns amigos.
Infelizmente, pouco tempo depois soubemos que os dois vieram a falecer, mas não sei bem se foi por doença ou por saudade.
Anos mais tarde, já de volta ao Rio de Janeiro e à vida de solteiro, lembrei-me de "Perseu" e da sua infalível, providencial e excentrica companhia.
Perguntei-me: Será que existe um"céu" para onde vão os bichos?
Fiquei a torcer para que a resposta fosse positiva.
Assim, pelo menos eu teria a certeza de que meu velho e querido amigo "Perseu" estaria lá em cima, andando empinado por sobre as nuvens de algodão e ignorando os outros bichos...
Ah sim... é claro, e esbofeteando o "Schumycky" .
Pobre "Schumycky"!
(Na foto acima, um flagrante de Perseu em um dos seus estranhos hábitos: esconder-se no alto da chaminé do vizinho em dias de chuva) - Foto: Acervo Pessoal / 2000)
(Na foto acima, um flagrante de Perseu em um dos seus estranhos hábitos: esconder-se no alto da chaminé do vizinho em dias de chuva) - Foto: Acervo Pessoal / 2000)
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